---- Capitulo 16 Diferente de Gabriel, que estava a beira da loucura, Marilia vivia em plena paz. Ela nao sabia que ele a procurava desesperadamente. O chip do celular foi partido ao meio e descartado no instante em que partiu. Todas as suas contas em redes sociais foram deletadas. As ligações, as mensagens, as buscas frenéticas... Nada chegou até ela. E, na verdade, ela nem queria saber. O passado era uma ferida cicatrizada. Uma sombria tempestade da qual havia escapado. Tinha lutado com todas as forgas para se libertar daquele pesadelo. Nao queria, de forma alguma, qualquer vinculo com o que ficou para tras. E, entre tudo o que abandonou... ---- Gabriel também ficou para tras. Durante um almogo tranquilo, sua tia sorriu ao lhe fazer uma pergunta: - Marilia, vocé estudou Artes, nao foi? Ela assentiu. - Tenho percebido que vocé tem feito muitas pinturas desde que chegou. Seus quadros sao lindos, com uma atmosfera tinica. Eu e seu tio adoramos. O tom da tia era animado. - Seu tio acha um desperdicio essas obras ficarem guardadas em casa, acumulando poeira... Marilia ergueu os olhos, curiosa. - Ele quer investir em uma exposicao para vocé. Uma exposic¢ao? Seus olhos se arregalaram de surpresa. Por um instante, o brilho em seu olhar a traiu. La no fundo, ela sempre sonhou com isso. ---- Para um artista, expor seu trabalho nao era apenas um reconhecimento. Era uma chance de se mostrar ao mundo. Desde o dia em que segurou um pincel pela primeira vez, imaginou esse momento. Mas logo, a empolgacao deu lugar a preocupacao. Era caro. E, desde que chegou, nao estava trabalhando. Nao queria ser um peso para ninguém. Franziu a testa, hesitante. - Uma exposicao custa muito dinheiro... Sua voz saiu cuidadosa. - Eu ainda nao tenho emprego, nao ganho nada... ja me sinto culpada por estar morando aqui sem. contribuir. Fazer seu marido gastar dinheiro comigo... Elisabete interrompeu imediatamente. - Que bobagem é essa? ---- Os olhos da tia ficaram marejados. - Se alguém tem que se sentir culpada, sou eu. Avoz dela tremeu. - Se eu tivesse procurado sua mae antes... Ela mordeu os labios, segurando as lagrimas. - Se eu tivesse entrado em contato mais cedo, talvez vocés nao tivessem passado por tantas dificuldades em Cavéria. Talvez sua mae ainda estivesse viva. Marilia sentiu o peito apertar. Os olhos de Elisabete ficaram vermelhos. Elae sua irma, Graça Moreira, mae de Marilia, nasceram em um vilarejo pobre, em uma familia que só valorizava os homens. Diferente da irma mais velha, que era dócil e submissa, Elisabete sempre foi teimosa e indomavel. Ela cresceu como uma erva daninha, resistente e determinada. ---- Quando os pais exigiram que largasse os estudos para casar, se recusou. A sutra veio uma, duas, incontaveis vezes. Mas ela nunca abaixou a cabeça. Até que, certa noite, fugiu para sempre. - Naquela noite, quando sai de casa, chovia muito - contou ela, num desses momentos de ins6nia, as lagrimas escorrendo no rosto. - De repente, minha irma apareceu no meio da tempestade. Marilia ouviu em siléncio. - Eu achei que ela tinha vindo me levar de volta... Os olhos de Elisabete brilharam com uma dor antiga. - Meu coração quase parou. Eu nao queria voltar. - Mas ela nao veio me impedir. Engoliu em seco. - Ela me deu todo o dinheiro que tinha. ---- Apertou a mao de Marilia com forga. - Foram exatamente 5.033 reais. - Erao dinheiro que ela juntou em um ano inteiro de trabalho. O aperto ficou mais forte. - Minha irmã largou a escola cedo para trabalhar... - Mas, todo fim de ano, era obrigada a entregar cada centavo para aquele parasita que chamavamos de pai. - Se faltasse cem reais, era espancada. - Mas, naquela noite... Seus olhos brilharam de emogao. - Ela me deu tudo. - Depois me empurrou para dentro da estacao e disse: "Vá. Va para longe. Nunca mais volte." A voz de Elisabete falhou. Ela respirou fundo antes de continuar. - Entao eu fui. ---- - Quando sai do pais, mudei de nome. Mordeu o labio inferior. - Eu odiava o nome Elisabete. Apertou os punhos. - Toda vez que alguém me chamava assim, sentia como se me dessem um tapa na cara. Olhou para Marilia, os olhos ardendo de dor e arrependimento. - Entao virei Selene. Respirou fundo, tentando se recompor. - Trabalhei enquanto estudava. - Aproveitei cada oportunidade que surgiu. - Passei na universidade, fui para o exterior, fiz mestrado, construi uma carreira, fundei minha propria empresa... Apertou ainda mais a mao da sobrinha. - Finalmente consegui. ---- - Deixei o passado para tras e recomecei minha vida. O siléncio se estendeu. Até que, baixinho, sussurrou: - A única coisa de que me arrependo... Fechou os olhos por um instante, engolindo o choro. - Foi nao ter voltado antes para buscar minha irma. - Sempre pensei que, quando estivesse estavel e bem. -sucedida, iria procura-la e trazé-la para viver comigo. Soltou um riso fraco, carregado de tristeza. - Mas nao imaginei que...